O doce som das teclas do piano ressoava por todo o ambiente aconchegante, em estilo medieval.
Um violino acompanhava a melodia quase fúnebre, um réquiem aos vivos e aos mortos. Seu réquiem particular.
Olhos azuis intensamente vidrados na atividade e dedos ágeis iam suavemente criando a música.
Os cabelos negros caíam no rosto e escorriam soltos até o chão, já que estava sentado.
Ao seu lado, uma cópia idêntica, de vastos cabelos louros, elegantemente cortados pouco acima da cintura e com cachos feitos com o esmero que jamais teria.
E caíam-lhe pelos ombros de forma perfeita. Tinham mesmo rosto, o mesmo corpo, os mesmos olhos, a mesma tez pálida, a mesma forma de sorrir, o mesmo olhar melancólico.
Estava de e olhos fechados e fazia movimentos suaves no violino dourado que jazia sobre o ombro.
A roupa era rigorosamente formal, um smoking branco com um colete, cintos e sapatos da mesma cor. As fivelas, botões e o relógio pendurado no colete eram dourados. Parecia um anjo.
Lucius sentia vontade de rir ao se imaginar com vestes tão vistosas e alegres.
O contrate entre suas roupas sombrias com as dele deixava bem claro o que os diferenciava.
Estavam conversando-se, despedindo com carinho um do outro e deixando claro o quanto o elo que tinham era especial.
Elevou seus olhos até a criatura e sorriu.
Ele ainda era o melhor violista que já conhecera seu irmão mais velho, seu gêmeo, seu oposto, a única "família" que sobrara, já que os descentes que tinham nem sequer lembravam seus nomes.
Terminaram a música em uma nota longa e a sustentaram quanto tempo puderam e então o silêncio caiu.
Um homem de longas túnicas marrons e um capuz que lhe encobria a face adentrou aquele lugar requintado e tocou o ombro do moreno com suas mãos frias. Os cabelos brancos escapavam um pouco e ajudavam a esconder seu rosto. Lucius não ousou olhar para seu adorado irmão para se despedir.
Não suportaria, não queria se virar e dizer "adeus". Não haveria um adeus. Mesmo que jamais se vissem novamente, jamais diria o mesmo adeus que dissera à Nádia e se arrependia até hoje.
-Até breve, Leo.Ouviu apenas um som abafado e novamente a despedida do violino, então sorriu.
Mais alguns passos a frente estava o velho homem e seu servo. Sabia que aquele velho era cego, era seu mestre e pai, o homem que criara a si e Leonard e os deixara daquele jeito, mas sabia também que ele o estava analisando. Claramente, nada foi dito. O silêncio antes dos embates era quase ritualístico entre todos. Por vezes, seu lorde aparecia para lhe dar as condecorações dignas de um cavaleiro. A maioria das vezes, não.
Saiu ao extenso jardim daquele ser, cheio de estátuas frígidas e de uma beleza aterradora. Jurou que sentia frio sob a roupa de veludo na cor vinho, que se arrastava pelo chão, aberta no peitoral e revelando sua nudez. Deixou-se guiar por entre monumentos conhecidos, sua mãe, seu pai, seus tios, sobrinhos, amigos, os padres bondosos que cuidaram de si, o castelo medieval no qual passara a infância, suas belas amantes, seus amores tão queridos...
A bela Nádia com seu vestido comprido, os seios fartos querendo rasgar o espartilho, o rosto delicado, os cabelos louros soltos...
Tão bela quanto se lembrava dela. Desejou quebrar o silêncio e questionar ao velho Mestre, mas não o fez.
Próximo a uma estrada escura havia uma muda de roupas que tivera preguiça de vestir após o banho do cair da tarde, quando despertara. Vestiu-se ali mesmo, pudor não era algo que afetava seu velho, chegou a rir baixinho ao ver-se novamente com sua velha indumentária.
Não tardou a seu cavalo alcançá-los e montou nele, desferindo um olhar a seu acompanhante.
-Chegarei até lá?
-Mas é claro. Da mesma forma que todos os caminhos acabam aqui, os que saem daqui lhe guiarão a seu destino.
Pensou em respondê-lo, mas acabou por calar-se. Passara o dia em sua terra natal, Valáquia. Fora beber, conhecer pessoas das quais não se lembraria, rir, conversar coisas fúteis, relembrar o tempo em que corria por aquelas terras com seu irmão e espadas de madeira em riste, imitando nobres cavaleiros, fingindo lutas... Ainda tinham o cabelo curto, podia sentir o cheiro pútrido das valas e fossas, o suor dos corpos roliços e fortes.
Podia ver o sorriso complacente da mãe que lhes dizia para deixar os fios do cabelo soltos na adolescência durante as breves visitas duas vezes ao ano, via o sangue, o horror, a guerra, a Peste, a morte. E então, o despertar. O horror de reerguer-se daquela sepultura fétida, os corpos apodrecendo a seu lado, o gosto de terra na boca, a sujeira, o desespero, a dor, fraqueza... A sede. Não era sede de sangue, nunca foi pelo sangue em si, era muito mais que isso.
Saiu dos devaneios de forma abrupta e decidiu voltar ao Jardim, a mente ainda em torpor.
Onde estaria a irmã mais nova? O que teria sido da impetuosa ruiva Ember, a menina que ele próprio havia transformado em monstro? Aquela flor que tanto cuidava, sua pequena tão amada...
Estaria ela viva, por mais irônico que fosse a expressão, ainda? Perguntas demais, respostas de menos.
Resignava-se, ainda era uma forma de continuar a sobreviver, não era?
Sorriu e bateu o estribo no flanco de seu animal. Seu cabelo esvoaçou como asas negras. Agora não havia traço de cor alguma em seu traje, apenas o luto. Roupas finas, de tecido ajustado ao corpo esguio. Calças de lã, coturnos que iam até a coxa, camisa de gola alta e manga comprida feita em algodão, um cinto de couro com uma fivela que portava um brasão dourado, tudo encoberto por um longo sobretudo feito com um couro bastante forte, liso e reluzente que deveria arrastar-se no chão e estava completamente fechado até a cintura, o capuz caído.
Não usava os costumeiros adornos, não havia nenhum vestígio de sua natural afetação por uma beleza idealizada que jamais o satisfazia. Ali ele era apenas um sacrifício.
Queria sentir novamente os braços de sua amada esposa envolvendo-lhe os ombros, cantando baixinho alguma música da terra nórdica a qual ela pertencia.
Queria ouvi-la falando de seus deuses, queria que ela pudesse ter concebido sua criança.
Queria com um ardor terrível que ela jamais tivesse sido tragada pelo odioso Mestre que era desprovido de sentimentos.
Nádia, a mulher dentre tantas, a única que lhe fizera cair de joelhos, que lhe fizera abandonar as amantes e jurar jamais amar a outra. Nunca haveria outra para si, apenas ela.
E agora... Havia o frio cortante que dava corpo a seu destino logo à frente.
A noite não tardaria a terminar, havia apenas três horas.
Epílogo
Dor. Essa deveria ser a primeira sensação dos mortos-vivos ao sentir os primeiros raios do sol na pele.
A deliciosa ardência que trazia a destruição para todas aquelas crias satânicas que sugavam o sangue e a vida alheia.
Mas o sol não me afetava, afetou apenas nos primeiros anos, claro.
Agora não, sou completamente imune a sua luz, mesmo que eu prefira me recolher durante o dia e viver como criatura noturna. Sempre preferi a noite e a escuridão, desde pequenino, enquanto meu irmão recriminava. Meus pais diziam que isso não era o correto para um padre, como eu almejava ser um sacerdote divino se era muito mais atraído pela noite e seus mistérios?
Agora eu sou o que sempre desejei ter.
E não importa mais nada. Apenas a neve fofa sob os cascos de Paladino, a planície branca, vasta e reflexiva ao ponto de machucar minhas vistas acostumadas a lugares escuros. Pisquei várias vezes até me acostumar com a alvura e a beleza estonteante, sentindo-me um invasor profano que apenas viera para macular e destruir.
Respirei fundo, mesmo sem precisar, e apreciei o frio que cortou minhas entranhas de um modo tão perfeito que se tornou quase um calor cheio de alento. Quase.
Não haveria alento para mim tão cedo.
Observei que o caminho de meu mestre estava chegando ao fim e a ilusão que ele criara para guiar-me começava a desaparecer.
Com ela, Nádia. Ela viera junto a mim em seu corcel branco, velando-me com seu silêncio e seus olhos verdes indignados.
Nunca havia gostado de minhas lutas a minha esposa.
Entendia que eu precisava ir, mas jamais aprovou. Não queria ver-me ferido, não queria ver a única verdade e se recusava a beber meu sangue, por mais que ela o desejasse.
E agora ela era apenas um vulto que me acompanhara em silêncio e esvanecia-se com lágrimas de sangue nos olhos, dizendo-me aos prantos o que sempre dizia.
-Não vá, Lucius. Não me deixe sozinha, meu amor... Não vá, por favor, não vá...Automaticamente ouvi minha voz respondendo tolamente a ilusão, a mesma resposta que lhe dei quando nos vimos pela última vez.
-É tarde para desistir, minha bela. Sempre foi tarde.
-Pare com essas tolices, Lucius! Por Odin, homem, volte para sua casa, estou grávida com sua criança!
E nem assim eu saí da soleira da porta para abraçá-la. Não a beijei, não a toquei, não fiz nada a não ser dar-lhe as costas enquanto suas lágrimas carmesins manchavam o chão de madeira. E agora, a neve tão branca. Dessa vez não lhe disse o seco ‘adeus’.
-Estaremos juntos em breve, meu amor. Espere por mim nos portões negros de nosso reino... Não tardará...
-Tarda sim, Lucius. Tu mentes para mim... Não há ‘nosso’ reino... Nunca houve nada para ti, ingrato... Por que não para de se enganar?!
-Nunca menti. Novamente enfrentarei a morte como sempre fiz. Se for desejo dela receber-me em seus braços, assim será. E estarei junto a ti, doce ilusão amada.E novamente fui covarde e não a olhei enquanto sua imagem formosa desaparecia junto com os gritos de meu passado. Bom covarde que sou. Sempre escolhendo uma maneira dramática de fugir.
Ela estava certa, afinal de contas. Eu nunca vou ver portão algum.
Estou apenas esperando o réquiem perfeito que me fará desaparecer.
Novamente eu farei meu próprio cortejo fúnebre.
Ali ao longe não é Seven? Sim, o próprio. Em meio a esta planície tão bela e fria não seria fácil se esconder e eu duvidava que ele tivesse motivos para isso.
Meu amado Paladino parecia irritado e fazia menção de avançar alucinadamente, seus olhos estavam quase em chamas...
Desci sem pestanejar, mesmo com ele em movimento e passei a puxá-lo pelas rédeas com certa força quando ele se tornou arredio. Forcei para que se mantivesse normal e o acalmei com carícias e palavras doces.
Tão sensível era meu adorado corcel, mas também, como não ser? Apesar de tudo, ele era bom.
Não importando a função podre que lhe fora dada e o fato de seu dono original ter desaparecido novamente.
Ele havia se achegado a mim alvo como aquela neve.
Deixou meu toque transformá-lo em negro e agora até mesmo sua crina era da cor de carvão, exceto seus olhos. Normalmente eles seriam verdes, mas agora queimavam com um fogo branco e sua cor negra tornava-se cinza conforme eu caminhava até o homem que me esperava, atrás de mim, a luz do dia trazia sua claridade. Em breve Paladino voltaria a ser como a neve, o que significa apenas uma coisa. Eu não poderia mandá-lo de volta.
Meus passos firmes deixaram suas marcas por várias horas até que restasse pouca distância que me separasse de meu destino, já era dia e o sol havia se erguido timidamente, iluminando cada vez mais aquele mar de cristal nas primeiras horas da manhã.
Não havia medo em mim, tampouco receio. Sei que estava sendo extremamente covarde, sempre fui covarde e nunca me orgulhei.
Nunca me perdoei. Talvez seja o remorso a preencher meu coração, que há muito não mais bate.
A letargia comum a mim antes de um embate novamente tomava força e retirava minha consciência de mim mesmo enquanto eu observava o ser que estava ali.
Notei, então, que não sentia mais o frio, meu corpo estava absorvendo a temperatura para dentro de si e cogitei que eu mesmo deveria estar muito mais frio do que nunca estive antes.
Não creio que algum de meus amores gostaria de me tocar agora, acho que eles morreriam de hipotermia.
Eu, que sempre fui frio, o menino que nascera nas terras gélidas do norte e vivera em um mosteiro inglês em uma montanha gelada...
Senti-me um iceberg vivo. A sensação encheu-me com um deleite sobrenatural, familiar e sorri cortês para o homem que viera.
Reverenciei-lhe com educação, levando minha destra sobre o coração e abaixei, soltando as rédeas de Paladino.
Meus cabelos tocaram o chão junto com meu olhar pelos segundos necessários para o cumprimento e, quando me ergui novamente, deixei-me analisá-lo, resignado e pouco curioso, o mero interesse de um condenado para dar a seu algoz um rosto.
Por fim, respeitosamente permiti que minha voz aveludada soasse baixa, apenas suficientemente audível para que ele ouvisse sem problemas.
Minha quietude era incomum, não costumo gostar de ficar calado e é raro não ter palavras.
Mas sentia minha mente se esvair das alegrias mundanas que eu tanto amava. Pisquei rapidamente.
-Peço que perdoe minha demora, Paladino tornou-se arredio e obrigou-me a caminhar. – Comentei mantendo o sorriso de outrora.
– Tenha a gentileza de fazer as honras, visto que palavras sejam desnecessárias nesta situação. Assim como apresentações, a menos que seja de seu desejo.E recolhi-me novamente ao silêncio. Não havia nada mais sábio a se fazer no momento.
Apenas afastei o cavalo de mim um pouco, para que não interferisse tão cedo e observei-o de esguelha enquanto desaparecia. Sentia ainda sua presença, mas não mais era possível vê-lo.
Novamente a frieza impenetrável, a letargia crescente, abstração de quem eu deveria ser e o conhecimento de quem eu era. Meu Lorde havia permitido que o selo oscilasse, ele me assistia.
Iria se torturar e permitir que eu me tornasse o que sempre condenou. Seu silêncio deveria me acompanhar junto com a sabedoria eloquente que apenas fazia-se presente em mim naqueles momentos.
Senti certa dormência agradável e um entorpecimento causado pelo frio que eu não parava de absorver. Fiz uma prece silenciosa a meus deuses mortos e a meu Lorde e esperei. Alguma vez já me senti tão calmo assim?
Ah... Como é doce a ansiedade.
Como é maravilhoso não ter consciência de si.
Como é perfeito perceber que seu orgulho está esvaindo-se por seus dedos...
E que a consciência que era sua já não mais lhe pertence. Mas nunca me pertenci, não é mesmo?
Nunca tive razão para temer a destruição ou oponentes mais fortes. O pior que eles podiam fazer era apagar minha existência... Mas e daí?
O que vale é os momentos que precedem o fim, a doçura selvagem e o fervor do embate.
Afinal, era o dever de um padre, devotar sua vida, sua existência e sua alma a seu senhor, não?
Eu sempre fui um bom sacerdote.
Que venha a Tempestade. Que venha a Morte. Que venham meus fantasmas.
Que tenha início essa sinfonia da destruição... Enfim...
Que comece!